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domingo, 31 de julho de 2011

Cozinhando a galinha dos ovos de ouro

Por Joaquim Maia Neto
Desde pequeno ouço muita gente dizer que o Brasil é um país com vocação agrícola. Nas aulas de geografia os professores enalteciam a grandeza territorial, a qualidade das terras e o clima, como fatores que comprovavam nossa aptidão rural. A repetição constante desse diagnóstico brasileiro fez o povo internalizar tal discurso e moldou os rumos da nossa economia. Essa visão não se modificou nem mesmo durante os períodos de crescimento da industrialização ocorridos durante os governos Vargas, JK e da ditadura militar.
Não há entre as nações mais desenvolvidas do mundo alguma que tenha a produção e exportação de produtos primários como carro-chefe de sua economia. É muito oneroso para qualquer país sustentar sua balança comercial exportando commodities primárias e importando bens com alto grau de elaboração tecnológica. A produção em larga escala de grãos e minério gera empregos em menor quantidade e de qualidade inferior e em geral concentra renda quando comparada com a atividade industrial de ponta. Além disso, devido ao baixo valor agregado dos produtos primários, é necessário um grande esforço quantitativo para fazer frente à demanda por produtos industrializados, que são muito mais caros.
A pauta brasileira de exportações concentra-se principalmente em minério de ferro, soja, petróleo bruto, carnes e açúcar. Estes cinco produtos representaram, em 2010, 43,36% do valor total exportado. Atualmente o Brasil tem sido beneficiado pela alta internacional dos preços das commodities, mas essa concentração é muito perigosa, pois historicamente há uma grande volatilidade nos preços dessas mercadorias.
A China, maior exportador do mundo, concentra suas exportações em produtos manufaturados, assim como os EUA que apesar de ser o maior produtor agrícola do mundo, tem fortíssimo predomínio de bens industriais nas suas exportações. A Índia, país emergente como o Brasil e a China, também exporta majoritariamente produtos industrializados.
O modelo de crescimento atualmente adotado pelo Brasil é atrasado. Pautar a balança comercial na exportação de produtos primários não nos levará a crescimento sustentável. Ao contrário, fará com que o país não se desenvolva tecnologicamente, concentrará ainda mais renda e promoverá o esgotamento dos recursos naturais e a degradação ambiental. Os investimentos em infraestrutura estão sendo direcionados em grande parte ao escoamento da produção mineral e agrícola, reforçando a política do atraso.
Na atual discussão sobre o código florestal, parlamentares da bancada ruralista tentam passar para a opinião pública a imagem de que o grande agronegócio brasileiro é o principal responsável pelo desenvolvimento do país, pelo crescimento econômico e pela produção de alimentos. Além de sua fragilidade, a atual política de desenvolvimento baseada no setor primário deixa muito a desejar em termos de produção de alimentos. Grande parte da área plantada não tem qualquer relação com provisão alimentar humana. A soja cultivada no Brasil é, em sua maioria, direcionada para a alimentação animal em outros países. Um grande percentual de terras cultivadas está comprometido com a produção de biocombustíveis. A comunidade científica tem afirmado reiteradamente que não é necessário reduzir a proteção das florestas para expandir a produção de alimentos no país. As áreas legalmente desmatadas existentes atualmente são suficientes para atender as necessidades brasileiras, bastando apenas algum avanço na implementação de tecnologia produtiva, já disponível no país. Por que, então, os ruralistas querem reduzir as exigências conservacionistas da atual legislação?
Um argumento muito utilizado e que se dissemina com facilidade em meio à população desavisada, convencendo até mesmo pessoas preocupadas com o equilíbrio ambiental, é o de que a legislação brasileira tem exigências que não existem em nenhum outro lugar do mundo, como a reserva legal, e que os países desenvolvidos têm extensão de áreas conservadas muito inferiores a do Brasil. Em recente artigo na Folha de São Paulo a senadora Kátia Abreu (DEM-TO) classificou a reserva legal como uma “jabuticaba jurídica” e criticou o atual código florestal comparando a realidade brasileira com a da Europa e dos EUA, que teriam, segundo a senadora, 0,2% e 23% de vegetação nativa em seus territórios, respectivamente.
Comparar a realidade ambiental brasileira com a dos países desenvolvidos, no sentido de defender parâmetros de conservação semelhantes entre essas realidades distintas, não faz o menor sentido, prestando tal comparação apenas a confundir a opinião pública. A diversidade biológica, de hábitats e de ecossistemas do Brasil é extremamente superior à diversidade original dos países do hemisfério norte. Quando comparado com as civilizações europeias, cronologicamente nosso país pode ser considerado uma criança. Durante o desenvolvimento daquelas civilizações não havia no mundo qualquer preocupação ambiental. Ninguém sequer sabia do caráter finito dos recursos naturais e não se tinha a noção de que as alterações provocadas pelo homem no ambiente poderiam trazer consequências negativas. Quando essa consciência surgiu a Europa já tinha grande parte do seu território ocupada e alterada por atividades antrópicas. O percentual de vegetação nativa existente nos EUA é maior do que aquele que se exige nas propriedades rurais brasileiras localizadas fora da Amazônia Legal. Ainda assim não é um percentual grande quando comparado com o do Brasil, mas os EUA, apesar de ser um país jovem, tiveram um processo de industrialização muito mais antigo e intenso do que o brasileiro e também não são nenhum exemplo de conservação ou de preocupação ambiental. Constata-se isso facilmente ao analisar os posicionamentos daquele país nas discussões internacionais sobre meio ambiente.
O caminho que o Brasil deve traçar para seu desenvolvimento não é a imitação dos países desenvolvidos. Não há espaço para isso no atual contexto global. Seguir o mesmo caminho que seguiram os europeus é fechar os olhos para a história, levando ao cometimento de erros que hoje em dia são imperdoáveis. As consequências da degradação ambiental não se restringem ao território dos países onde elas acontecem. Não é porque muitos países se desenvolveram dilapidando de seu patrimônio natural que temos que fazer o mesmo.  Imitá-los comprometeria a todos. O que devemos fazer é exigir compensações das nações ricas pelo serviço que estamos prestando ao mundo ao resgatar o passivo que elas deixaram. Muitos países desenvolvidos estão dispostos a arcar com parte desses custos.  Além disso, o patrimônio natural brasileiro é um recurso econômico muito mais rentável ao país caso seja explorado de maneira sustentável.
As florestas em pé geram muito mais oportunidades econômicas ao Brasil do que quando são derrubadas, e esse é o diferencial que temos em relação aos demais países. Podemos gerar receita, renda, empregos, oportunidades e desenvolvimento muito mais satisfatórios com nossos recursos naturais do que os que estão sendo gerados com a produção de commodities. Um estudo recente desenvolvido pelo Programa das Nações Unidades para o Meio Ambiente – UNEP e pelo Ministério do Meio Ambiente¹ demonstrou que as unidades de conservação têm potencial para gerar mais de 10 bilhões de reais de receita por ano com exploração sustentável de madeira, extrativismo, visitação, estoque de carbono e ICMS ecológico. Não foram computados recursos para os quais não existem ainda técnicas de valoração confiáveis. Nossos recursos ambientais não se resumem aos existentes nas UCs e, portanto, o potencial econômico da conservação é ainda maior.
O turismo ambiental, o acesso ao patrimônio genético com o pagamento pelo conhecimento tradicional associado e a prospecção da biodiversidade para a produção de fármacos são exemplos de atividades que são subaproveitadas no país e que têm grande potencial econômico aliado à conservação. Estamos perdendo esse potencial por insistir no uso irracional dos recursos naturais, pensando de maneira muito imediatista. Preferimos o caminho mais curto. Para quebrar o paradigma e chegar a um patamar superior de utilização das riquezas naturais, precisamos aumentar os investimentos em ciência e tecnologia. Isso nos levaria a um desenvolvimento maior e duradouro.
Resumir o aproveitamento da natureza à exploração mineral e agrícola é a escolha por uma caminhada de pouco fôlego, um desperdício. É condenar o país à mediocridade. É a opção que nos manterá como quintal das nações desenvolvidas e como eternos provedores de matéria prima e importadores de tecnologia, perpetuando a situação de dependência. Para matar nossa fome, estamos cozinhando a galinha dos ovos de ouro.
A vocação do Brasil é aproveitar o que o país tem de mais rico: sua biodiversidade que o distingue das demais nações. Para fazer isso adequadamente é preciso conservar. Os países desenvolvidos não o fazem porque não têm o que nós temos. É falacioso o discurso de que políticas conservacionistas são imposições estrangeiras com o objetivo de tirar a competitividade agrícola brasileira. Destruir florestas e poluir para gerar superávit comercial com a venda de ferro, soja, petróleo bruto, boi e açúcar não nos levará ao patamar de desenvolvimento que desejamos. Essa prática é concentradora de renda e geradora de pobreza no longo prazo. Atualmente só não está causando o agravamento dos problemas sociais porque estamos investindo em políticas assistencialistas de transferência de renda e vivendo em um contexto internacional favorável, com a crescente demanda chinesa. Mas até quando isso se sustentará?
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¹ Medeiros, R.; Young; C.E.F.; Pavese, H. B. & Araújo, F. F. S. 2011. Contribuição das unidades de conservação brasileiras para a economia nacional: Sumário Executivo. Brasília: UNEP-WCMC, 44p.

domingo, 24 de julho de 2011

Quem cuida do meio ambiente no Brasil?

por Joaquim Maia Neto

A presidente Dilma Rousseff irá reduzir, por medida provisória, áreas de três unidades de conservação da natureza localizadas na Amazônia. O objetivo das desafetações do Parque Nacional da Amazônia e das Florestas Nacionais de Itaituba 1 e 2 é possibilitar o alagamento para viabilizar a construção de duas grandes usinas hidrelétricas. Outras unidades e algumas terras indígenas localizadas do bioma também estão na mira do governo. A Lei que criou o Sistema Nacional de Unidades de Conservação impede, em alguns casos, e restringe em outros, a utilização dessas áreas protegidas para a implantação de empreendimentos que causam impacto ambiental. A mesma Lei determina que as áreas das unidades de conservação só podem ser desafetadas por meio de Lei.
A notícia foi divulgada poucos dias após o presidente do IBAMA declarar, em entrevista sobre a UHE de Belo Monte, que seu trabalho não é cuidar do meio ambiente. Ainda que a afirmação tenha sido um ato falho, talvez motivado pelo fato de estar se comunicando em um idioma estrangeiro, não deixa de ser sintomática. A declaração me fez relembrar outra, da então ministra chefe da Casa Civil, hoje presidente da república, que em Copenhague, durante a COP-15, disse que “o meio ambiente é sem dúvida nenhuma uma ameaça ao desenvolvimento sustentável”.
A psicologia explica que quando se comete um erro de discurso desse tipo, muitas vezes há alguma motivação, pouco consciente, oriunda de uma convicção próxima do que se disse, ou ainda causada por uma pressão no sentido de agir diferentemente do que deveria ser dito.
A prática da atual presidente da república, desde os tempos do Ministério das Minas e Energia, sempre foi de contraposição à área ambiental do governo, coerentemente com sua linha desenvolvimentista. Por sua vez o IBAMA nunca foi tão pressionado a agir em confronto com os objetivos de conservação da natureza constantes da Lei que o criou. Sendo assim, ambos os atos podem não ter sido tão falhos assim.
Analisando dessa forma, percebe-se certa dificuldade em responder a pergunta que intitula este artigo.
Desafetar unidades de conservação, por qualquer que seja o motivo, é uma ação que deveria ser precedida de estudos técnicos e científicos que justifiquem essa decisão, já que a criação delas é baseada em estudos que indicam a necessidade de se proteger os atributos naturais existentes num determinado espaço territorial. O próprio legislador, ao determinar a exigência de Lei para se reduzir ou extinguir uma unidade de conservação, ainda que criada por decreto, levou em consideração o princípio da precaução que está consolidado no direito ambiental e que visa impedir que a falta de informação científica possibilite uma perda irreparável dos recursos naturais com o consequente comprometimento dos seus serviços ambientais. Sabemos que a tramitação de um projeto de Lei envolve tempo e discussão, fatores que permitem trazer à luz as informações obtidas nos estudos. Em sentido contrário, a utilização de medida provisória para essa finalidade, além de arbitrária, distorce completamente o sentido da existência das unidades de conservação, pois subverte a relativa rigidez necessária na delimitação das áreas, fundamental para o planejamento e a gestão da conservação. Qual a urgência e a relevância que justificam uma MP dessas, se a construção de UHEs é uma atividade que envolve planejamento?
Parque Nacional da Amazônia
Foto: Arquivo ICMBio
Os gestores das unidades a serem vitimadas por essa  autoritária investida anti-ambiental do governo, manifestaram-se contrariamente à proposição, mas surpreendentemente, ou nem tanto, a direção do Instituto Chico Mendes, entidade gestora das unidades de conservação federais, vê esse processo com naturalidade, considerando-o “normal”. De fato a desafetação de unidades de conservação lentamente vem se tornando normal. Foi assim com a Floresta Nacional do Bom Futuro, em Rondônia, onde após grandes investimentos financeiros em uma megaoperação de fiscalização, houve a exclusão de cerca de dois terços da área para beneficiar pecuaristas produtores de “bois-piratas”. Provavelmente será  assim no Parque Nacional da Serra da Canastra, em Minas Gerais, onde parlamentares patrocinam um esquartejamento dos seus limites para que se perpetuem as queimadas e a exploração de rochas e diamantes no “berçário“ das águas do São Francisco. Além das reduções, observamos uma drástica desaceleração no ritmo de criação de novas unidades desde o segundo mandato do presidente Lula. Pelo jeito não é só o IBAMA que não cuida do meio ambiente.
Não importa quantas espécies vão se extinguir, quantas aldeias indígenas vão ser desalojadas, quantas unidades de conservação vão sucumbir ou quanto território será desflorestado. Precisamos de energia! E tem que ser hidrelétrica, pois é assim que o governo (ou as empreiteiras?) quer. Está sendo discutido, no âmbito do Ministério das Minas e Energia, o Plano Decenal de Expansão de Energia (2011-2020). No relatório de 343 páginas colocado à consulta pública, há um único parágrafo específico sobre fontes alternativas de energia e que ainda inclui entre estas as pequenas centrais hidrelétricas.
O PT é um partido com forte histórico de discussão e defesa das causas sociais e ambientais. Desde muito tempo organizou coletivos de meio ambiente em suas instâncias partidárias e formou muitos quadros na área. Esses quadros hoje estão no governo, apesar de alguns deles terem saído por divergências, como a própria Marina Silva. Por que, então, vemos tamanho retrocesso? Esse chamado “governo de coalizão” é um “governo em disputa”, como diziam aos dissidentes os petistas recém-alçados ao poder no Governo Lula. Esta é uma realidade tão certa quanto o fato de que a disputa está sendo amplamente vencida pelo “inimigo”. No loteamento que garante a governabilidade, o PT ficou com o controle da macroeconomia, da articulação política e com as áreas sociais, o que já é capaz de contemplar boa parte dos grupos do partido. Entre as pastas sociais estão saúde e educação, com orçamentos gigantescos controlados por petistas. Mas justamente os ministérios da agricultura, minas e energia e transportes, afins ao desenvolvimentismo que tem na figura da presidente da república seu grande baluarte, estão com aliados fisiológicos. São ministérios que movimentam grandes montantes de recursos, que gerem grandes contratos e que despertam grandes interesses. O recente escândalo nos transportes deixou isso evidente.
O raciocínio é simples: juntando-se uma presidente que não tem o DNA do PT (não tem a vivência nos coletivos partidários) e que é a “mãe do PAC” com aliados fisiológicos que controlam as pastas que tocam esse PAC, cria-se um terrível desequilíbrio na correlação de forças da disputa do poder. Não estou aqui tratando das questões éticas, porque nesse ponto a presidente é bem menos transigente que seu antecessor, fato que ficou nitidamente demonstrado com o afastamento sumário das cúpulas do DNIT, Valec e MT. Falo justamente do jogo de poder e de interesses. Como os projetos desenvolvimentistas aparentemente não se chocam com as áreas de educação e saúde e dão o norte à área econômica, quem é atropelado é o Ministério do Meio Ambiente.
Os históricos petistas do MMA, cuja prática é a mais democrática possível, são transparentes em tudo o que fazem. Envolvem os demais ministérios nas discussões ambientais e buscam a conciliação. Acreditam nessa forma de resolver conflitos. Enquanto isso levam rasteiras dos colegas de outros ministérios. Foi o que aconteceu com a votação do Código Florestal. O Ministério da Agricultura articulou-se nos bastidores e levou a base aliada e a maior parte da bancada petista a votar num texto retrógrado. Os outrora combativos militantes socioambientais aninhados na Esplanada, hoje estão passivos, aceitando mínimas mitigações nos licenciamentos ambientais das vergonhosas UHEs amazônicas, minúsculas reformas no horrível código florestal aprovado pela Câmara, insignificante participação na discussão da matriz energética, entre outras migalhas, sob o argumento que o governo estaria pior sem eles. Hoje são dirigidos no MMA e nas autarquias vinculadas, por “quadros com perfil técnico”, cuja ação prática é mais política do que a de políticos que os antecederam em governos passados.
Nos aniversários de 15 e 21 anos do IBAMA, o instituto adotou nas comemorações o slogan “cuidando do Brasil”. “Vamos Cuidar do Brasil” também foi o tema da II Conferência Nacional do Meio Ambiente, promovida pelo MMA. Se o papel dessas instituições não é o de cuidar do meio ambiente, resta saber qual é o Brasil que querem cuidar. O Brasil sustentável, com qualidade ambiental e oportunidades para as próximas gerações, e com respeito ao meio ambiente, aos povos indígenas e a todas as formas de vida, não é o que vem sendo projetado pelas empreiteiras, pelos ex-dirigentes das entidades ligadas ao Ministério dos Transportes, pelas Medidas Provisórias e pelos parlamentares que desmontam a legislação ambiental.

domingo, 17 de julho de 2011

Financiamento e desafios da educação brasileira

por Joaquim Maia Neto

Tramita desde o fim do ano passado no Congresso Nacional o Plano Nacional de Educação (PNE), que deverá traçar as diretrizes e metas para melhorar a educação brasileira no decênio 2011-2020.
Uma das metas propostas trata do financiamento da educação pública, particularmente do percentual do PIB a ser investido na área. O Brasil aumentou seu investimento em educação de 3,7% do PIB entre 1994 e 2000 para os atuais 5,2% a partir de 2007. O Governo propõe uma meta de 7% a ser alcançada até 2020, enquanto os movimentos sociais, entidades sindicais representativas dos trabalhadores em educação e dirigentes municipais de ensino defendem uma meta mais ousada, de 10% do PIB.
Quando comparamos o percentual do PIB investido em educação pública no Brasil com a realidade dos países desenvolvidos, percebemos que o nosso país não está mal. A média dos membros da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), organismo multilateral que congrega a maioria das nações mais desenvolvidas do mundo é de 5,7%. O investimento brasileiro supera o do Japão, que é de 4,9% do PIB.
Diversos estudos mostram que o aumento dos gastos públicos com educação não tem relação direta e linear com o crescimento da qualidade de ensino. A qualidade cresce em função do investimento até um determinado patamar de gasto, a partir do qual o crescimento da despesa não implica ganho qualitativo. Tal constatação aliada ao alto percentual do PIB investido atualmente em educação no Brasil não significa que não precisamos aumentar os investimentos. Há um número pouco divulgado que mostra onde realmente está o problema do financiamento educacional no país. Em termos de paridade de poder de compra (dado normalmente divulgado com sua sigla em inglês “PPP”), que permite uma comparação mais precisa entre países com realidades distintas, o Brasil está muito abaixo dos padrões de gastos públicos com educação da OCDE. Em 2007 gastamos US$ 1599 por aluno na educação infantil e US$ 2080 no ensino fundamental contra a média da OCDE de US$ 5447 e US$ 8216, respectivamente. No ensino médio o abismo é ainda maior: US$ 1427 no Brasil e US$ 8746 na OCDE. Portanto, ainda não chegamos ao topo da curva.
O problema, então, não é a discussão sobre aumentar ou não os investimentos em educação. O aumento é nitidamente necessário. A questão é o parâmetro escolhido para a meta, que deveria ser em termos de gasto por aluno, e não em percentual do PIB. O Brasil terá muito brevemente uma janela de oportunidade que possibilitará ampliar o gasto por aluno sem continuar aumentando a fatia do PIB investida na área educacional. Como a população brasileira está envelhecendo rapidamente, num futuro próximo teremos a população escolar significativamente menor que a atual. Em 2005 a população brasileira em idade escolar era de 50% do total. Estimativas do Banco Mundial indicam que esse percentual será reduzido para 29% em 2050.
No contexto atual, não há como melhorar a qualidade educacional do Brasil sem ampliar os investimentos públicos. Setores da sociedade avessos ao fortalecimento do Estado e à ampliação dos investimentos públicos na área social, que tiveram ampla voz na década de 1990, se utilizam do percentual do PIB para clamar contra mais recursos na educação, recorrendo a exemplos de melhoria qualitativa sem aumento de despesas. Esses exemplos existem e devem ser perseguidos paralelamente à expansão do financiamento, pois ainda não atingimos o patamar mínimo necessário para garantir qualidade compatível com a universalização alcançada na década de 90. É interessante notar que as mesmas elites que se insurgem contra a ampliação do investimento público, não pensam da mesma maneira ao investir na educação de seus filhos. Estudo do Instituto Insper demonstra que o investimento em ensino privado no país corresponde a 1,3% do PIB, contra 0,9% na média dos países da OCDE. A educação de qualidade no Brasil está privatizada e tem gente querendo que continue assim, pois mecanismos de concentração de renda que perduraram por muito tempo permitiram que um pequeno percentual abastado da população garantisse educação de qualidade aos seus filhos, pouco se importando com a situação geral do país. A proposta do senador Cristóvam Buarque (PDT/DF) de obrigar os políticos a matricular seus filhos em escola pública deve ter sido motivada pela análise dessas desigualdades. Em que pesem críticas à constitucionalidade da proposta, não deixa de ser uma inciativa interessante.
Um grande avanço no financiamento da educação foi a transformação do antigo FUNDEF, fundo criado no governo FHC que atendia apenas ao ensino fundamental, no atual FUNDEB, que contempla toda a educação básica. Isso está ajudando a corrigir uma distorção: o país ainda concentra seus gastos públicos nos ensinos fundamental e superior, negligenciando a educação infantil e o ensino médio. Aqui o gasto por aluno no ensino médio é inferior ao efetuado em todos os outros níveis. Gastar mais com estudantes do nível infantil e fundamental do que com os do ensino médio é uma situação difícil de explicar aos especialistas de países desenvolvidos.
Além do debate sobre o financiamento, outros fatores devem ser considerados na busca da sonhada melhoria da qualidade do ensino público. Um dia, queira Deus, atingiremos um patamar adequado de investimento, mas não podemos aguardar esse dia para resolver problemas qualitativos que não dependem apenas da quantidade de recursos. Os gastos em educação são pequenos, mas esse não é o maior problema. A qualidade do gasto é muito ruim. Boa parte do que os municípios investem na educação é direcionada para compensar carências sociais que, se não resolvidas, emperram o aprendizado. Gastam-se grandes montantes de recursos em calçados e passagens de ônibus, por exemplo, distribuídos aos estudantes para viabilizar a frequência escolar de crianças cujas famílias não dispõem de recursos para adquiri-los e que residem em locais onde não há escolas em número suficiente.
Os professores ainda são mal remunerados. Muitos quadros bem capacitados, que cursaram licenciaturas em boas universidades deixam a educação para atuar em áreas de maior reconhecimento. Os estudantes deixaram de ver no professor a figura de um profissional bem sucedido e isso interfere no respeito dedicado ao docente e consequentemente na disciplina necessária em sala de aula.
A capacitação é um dos grandes gargalos. As novas tecnologias, cada vez mais acessíveis aos estudantes, estabelecem a exigência de novas formas de ensino, muito mais dinâmicas, lúdicas e interativas. Mesmo que haja equipamentos tecnológicos à disposição do docente, o que ainda é incomum, não se conseguirá obter um bom aproveitamento caso o professor não tenha recebido a devida orientação. Grande parte dos profissionais da educação está sendo formada em faculdades privadas descomprometidas com a qualidade do ensino. Um rígido controle sobre os cursos de licenciatura repercutirá positivamente sobre o ensino público.
A avaliação dos sistemas de ensino e do desempenho dos estudantes foi a maior contribuição que o falecido ex-ministro Paulo Renato deixou ao país. Porém, as avaliações não podem levar a resultados apenas numéricos de atendimento a parâmetros pré-estabelecidos que muitas vezes não refletem a qualidade. Ainda hoje diretores de escolas são cobrados quanto à redução das taxas de reprovação e evasão, sem a exigência de mecanismos que supram as deficiências de aprendizado acumuladas pelos estudantes com baixo desempenho. A chamada “progressão continuada”, apelidada de “aprovação automática” foi implantada de maneira distorcida no Brasil, focada apenas na melhoria de índices a serem divulgados aos organismos internacionais. Iniciativas como as classes de aceleração e outras similares, que seriam uma esperança de resolver verdadeiramente o problema, foram abandonadas. O resultado é o caminho mais fácil: os diretores pressionam os docentes para que não haja reprovações, garantindo prêmios em dinheiro e ausência de incômodos por parte das secretarias de educação.
Acredito que ainda temos um grande caminho para descobrir como garantir qualidade no atual contexto mais democrático de inclusão e de busca pela universalização da educação básica. Os modismos baseados em teorias acadêmicas que às vezes deram resultado em contextos muito diferentes do brasileiro devem ficar para trás. Temos que encontrar nossa própria fórmula. Acho que a descoberta passa pela flexibilização dos nossos sistemas de ensino. É necessária uma pluralidade de métodos, disponíveis nas redes públicas, com a possibilidade de escolha democrática por parte das comunidades escolares e com a exigência de metas de desempenho do aprendizado real. Poderiam ser mantidas escolas com modelos tradicionais convivendo com outras de metodologia heterodoxa, como a da portuguesa Escola da Ponte, onde os alunos não são agrupados por classes ou anos de escolaridade, mas ao contrário, há grande liberdade de escolha entre os grupos de trabalho que melhor atendam às habilidades e afinidades de cada estudante.
O Estado deve garantir um financiamento que possibilite equipar as escolas, capacitar os professores, remunerar bem os profissionais da educação e fomentar a participação da sociedade na gestão escolar. É necessário garantir autonomia para que cada comunidade escolha o modelo que deseja seguir, assessorada por uma equipe capacitada de profissionais da educação que tenha condições de implementar um projeto político-pedagógico construído coletivamente. As avaliações de desempenho devem ser amplamente divulgadas, para possibilitar a adequação dos rumos de maneira dinâmica. Este não é um sonho distante. É bem palpável, bastando vontade política, planejamento e participação popular para que seja alcançado.

domingo, 10 de julho de 2011

As PCHs do Rio Turvo e o movimento ambientalista

por Joaquim Maia Neto

O Rio Turvo é um afluente da margem esquerda do Rio Grande, localizado inteiramente no estado de São Paulo. Nasce no município de Monte Alto e percorre aproximadamente 267 km até o seu desague, no município de Cardoso, divisa com Minas Gerais.
Mapa da Bacia Hidrográfica do Turvo/Grande
 No noroeste paulista, região onde o rio se localiza, predominam, do ponto de vista hidrográfico, grandes reservatórios artificiais oriundos de barragens de usinas hidrelétricas situadas nos rios Grande e Paraná. Devido às profundas alterações ambientais causadas pelas hidrelétricas, o Turvo passou a ser um dos rios mais importantes da região. Por ser um dos maiores cursos d’água livres de barramentos, desempenha um importante papel na conservação da ictiofauna. A topografia de sua bacia hidrográfica fez com que o rio desenvolvesse meandros e possibilitou uma grande planície de inundação que gera uma considerável diferença no tamanho do espelho d’água entre as estações seca e chuvosa. Essa diferença faz surgir, todos os anos, muitas lagoas marginais temporárias, perfeitos berçários naturais para alevinos de muitas espécies de peixes de piracema, que migram em direção às cabeceiras em cada ciclo reprodutivo. Permitindo que os peixes migrem e garantindo abrigo aos filhotes, o rio contribui significativamente para a manutenção da biodiversidade local, ameaçada pelos grandes barramentos.
Lagoas marginais do Turvo
(foto Amélito Fidélis)
Apesar de sofrer com grandes agressões, como supressão da vegetação ciliar, contaminação com agrotóxicos, captação excessiva de água para irrigação, pisoteio de gado na planície inundável, pesca predatória, entre outros, o Turvo propicia um grande espetáculo natural com ecossistemas que hoje são pouco comuns em São Paulo. É possível observar grandes concentrações de aves aquáticas buscando alimento em suas lagoas marginais e ainda há muitos peixes que são cada vez mais raros em outros rios, como o dourado, por exemplo. O sistema de meandros e lagoas marginais é tão rico e belo, que eu sempre achei que ali deveria ser criada uma unidade de conservação de proteção integral, como um Parque, que possibilitasse o desenvolvimento do turismo, o que é difícil principalmente devido ao valor das terras que deveriam ser desapropriadas.
Como se não bastassem as dificuldades que o Turvo enfrenta, uma nova ameaça paira sobre seu destino. A empreiteira Encalso pretende obter autorização da ANEEL para explorar o potencial hidrelétrico do Turvo, construindo duas Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs), uma na foz do Rio Preto e outra na Cachoeira do Talhadão, um importante atrativo turístico regional. As PCHs projetadas, apesar de operarem no modelo chamado “fio d’água”, não dispensarão barramentos e reservatórios para regularização de vazão. No total, serão alagados 7,9 quilômetros quadrados para gerar 28 MW de energia. O Prof. Dr. Arif Cais, biólogo da UNESP, calcula que a PCH do Talhadão reduzirá em 60% a vazão da cachoeira, o que prejudicará o turismo, a fauna aquática e todo o ecossistema.
Usinas hidrelétricas são empreendimentos causadores de diversos impactos ambientais. As PCHs são vantajosas em comparação com as grandes usinas. Seus reservatórios alagam áreas substancialmente menores e geralmente a relação entre área alagada e capacidade de geração é mais favorável. Apesar da vantagem ambiental, a construção de várias PCHs em uma bacia hidrográfica, muitas vezes em sequência ao longo de um rio, acaba potencializando o impacto. Nos processos de licenciamento ambiental desse tipo de obra é necessário que se faça uma análise integrada dos impactos causados pelos empreendimentos já existentes na bacia e uma projeção da situação futura. Em geral, os estudos integrados demonstram que o conjunto dos impactos é maior do que a soma dos danos de cada empreendimento analisado individualmente, pois existem efeitos cumulativos e a magnificação de um empreendimento sobre o outro.  
Cachoeira do Talhadão
(foto Amélito Fidélis)
No caso específico do Rio Turvo, mesmo que se construam apenas as duas PCHs propostas, a situação já se torna grave devido à alteração generalizada da bacia do Rio Grande causada pelas grandes hidrelétricas. Além dos impactos óbvios do alagamento, da supressão da vegetação e da movimentação de terra para construção do canal de adução, há ainda o impacto cênico na Cachoeira do Talhadão, causado pela redução drástica da vazão, e o impacto sobre a ictiofauna, que talvez seja o maior deles. Para quem não conhece, é bom que se diga que a Cachoeira do Talhadão não é um obstáculo para a piracema, pois ela é baixa e permite que os peixes saltem para montante, desde que haja água suficiente. O mesmo não ocorrerá com as barragens. Estas impedirão que as espécies realizem o fluxo migratório. A construção de “escadas de peixe” é uma boa medida mitigadora, mas não resolve o problema porque elas não são efetivas para boa parte das espécies.
Como tudo tem dois lados, o lado bom dessa história é a mobilização comunitária em torno do tema. Uma ONG ambientalista da região, a Associação de Defesa do Meio Ambiente, dos rios Turvo e Preto e da Cachoeira do Talhadão (AMERTP), iniciou uma grande campanha contra a construção das PCHs e, com a ajuda da comunidade científica, convenceu a população de que a região já produz a energia que precisa e que os benefícios a serem gerados pelas usinas não compensarão os danos ambientais. Foram realizadas petições eletrônicas, manifestações presenciais e articulações políticas. Conseguiram a proeza de trazer para o seu lado políticos de diversos partidos, que muitas vezes são oponentes entre si. Um senador do PSDB, três deputados federais (PSDB, DEM e PMDB) e três deputados estaduais (PT, PPS e PRB), ou seja, todos os sete parlamentares da região estão unidos em prol do meio ambiente e do interesse comunitário e contra uma empreiteira. Isso não é comum. É resultado da força do movimento. Mas não significa que a luta foi vencida, porque prefeitos estão sendo cooptados para defender as PCHs.
Vegetação ciliar do Rio Turvo
(foto Amélito Fidélis)
O caso regional do Turvo traz uma grande lição ao movimento ambientalista. É muito difícil convencer a sociedade partindo dos grandes temas. As lutas ambientais de âmbito nacional ou global são importantes, mas paralelamente deve-se construir uma massa crítica bem mais ampla, e só se chega a isso nas lutas locais, que afetam diretamente a população. Certamente a comunidade do município de Palestina, localidade onde está a cachoeira do Talhadão, está mais sensível para a questão ambiental e mais predisposta a apoiar lutas como as que as grandes ONGs ambientalistas promoveram contras as usinas de Santo Antônio, Jirau e Belo Monte, na Amazônia. Assim como mobilizaram seus parlamentares para uma causa local, poderão fazê-lo no futuro para causas maiores. Agora sabem o que é uma audiência pública de licenciamento, pois vão participar das que discutirão as PCHs do Turvo.
Grandes ONGs, como Greenpeace, WWF, ISA, SOS Mata Atlântica, Conservação Internacional, entre outras, que têm grande capacidade de financiamento e articulação, deveriam fazer parcerias com ONGs regionais, como a AMERTP e tantas outras que estão no dia-a-dia das comunidades apoiando suas causas regionais. Em troca, teriam um contingente maior de pessoas sensibilizadas com a causa ambiental, que poderia ajudar na pressão política necessária ao equilíbrio, hoje incipiente, entre meio ambiente e desenvolvimento. É para essas pessoas, que estão nas comunidades, que os políticos pedem voto, e não para os dirigentes das grandes ONGs. A conjuntura ambiental pela qual o mundo está passando já não permite que os ambientalistas falem para poucos, para seus iguais. A participação comunitária no assunto é essencial para vislumbrarmos o dia em que um dano ambiental incomodará a sociedade tanto quanto a falta de vagas nos hospitais ou de professores nas escolas.


Projeto da PCH do Talhadão (arte Diário da Região)


domingo, 3 de julho de 2011

Seleção Natural e Origem das Espécies: lições para entender o mundo

Por Joaquim Maia Neto

Na semana que passou comemoramos uma data extremamente importante para a humanidade, mas que poucas pessoas conhecem. Em 1º de julho de 1858 dois estudos desenvolvidos paralelamente foram apresentados em conjunto à Linnean Society of London, sob o título "Sobre a Tendência das Espécies de Formarem Variedades e; sobre a Perpetuação das Variedades e Espécies por Meios Naturais de Seleção". Seus autores eram dois eminentes cientistas britânicos, o naturalista pouco conhecido à época, Alfred Russel Wallace e seu colega já consagrado, Charles Robert Darwin.

Não é exagero afirmar que essa reunião mudou o mundo. Os trabalhos apresentados trouxeram o conceito da seleção natural e a explicação sobre a origem das espécies, ideias fundamentais para que a comunidade científica aceitasse, anos depois, a chamada “Teoria Evolutiva”, base da biologia moderna que prefiro chamar de Lei, dada sua ampla comprovação.

Darwin se notabilizara no meio acadêmico devido à viagem que empreendeu ao redor do mundo a bordo do navio Beagle entre 1831 e 1836. A viagem, que incluiu o Brasil, resultou na publicação de um livro, em 1839, na forma de diário e anotações, com importantes relatos científicos abrangendo as áreas da biologia, geologia e antropologia. Em 1838, Darwin, então com 29 anos de idade, já havia formulado a teoria da seleção natural, mas demorou vinte anos para publicá-la, temendo represálias da Igreja e da sociedade da época. Ideias evolucionistas eram tidas como contestação à crença em Deus e associadas a radicalismo político e ele temia que a divulgação de suas teses levasse à ruína social de sua família. Durante o lapso temporal entre a viagem do Beagle e a apresentação na Sociedade Lineana, foi aprimorando sua teoria secretamente, conversando sobre seus pensamentos com poucas pessoas mais próximas.
Alfred Russel Wallace (1823-1913)

Wallace, ao contrário de Darwin, não pertencia à aristocracia vitoriana. Era galês e sua família de classe média chegou a passar dificuldades financeiras. Inspirado por naturalistas viajantes resolveu empreender expedições para o estudo da história natural e em 1848, com apenas 25 anos de idade, partiu para o Brasil e realizou estudos na Floresta Amazônica. Depois viajou ao Arquipélago Malaio, onde acabou desenvolvendo uma teoria de origem das espécies. Costumava se corresponder com Darwin sobre seus estudos e em 1858 encaminhou a ele um manuscrito que, embora não tratasse da ideia de seleção natural, abordava a divergência evolutiva entre as espécies. Darwin já havia sido alertado sobre a necessidade de publicar seus trabalhos, sob pena de perder a precedência. Foi então que propôs a Wallace a apresentação conjunta.

Alguns historiadores da ciência defendem que Wallace foi prejudicado ao enviar seu manuscrito a Darwin porque isso precipitou a publicação de “A Origem das Espécies”. Darwin teria utilizado algumas descobertas de Wallace em seu livro. Na verdade, o próprio Wallace concordou com a divulgação conjunta de suas teorias, pois reconhecia a superioridade do prestígio acadêmico de seu colega. Se Wallace divulgasse seus estudos isoladamente talvez suas ideias não tivessem o mesmo impacto. Sem entrar no mérito de quem merece ser reconhecido como o “pai da teoria evolutiva”, o fato é que Darwin fez a descoberta primeiro, até porque era mais velho, mas não a publicou, e se Wallace não tivesse se comunicado com ele, teria publicado primeiro.

Charles Robert Darwin (1809 - 1882)

O mérito de Darwin para a compreensão da evolução é inegável, mas a contribuição de Wallace, de maneira geral, não tem sido reconhecida como deveria. Ele é autor da teoria da evolução tanto quanto Darwin, não apenas por tê-la desenvolvido paralelamente, mas porque há pequenas diferenças de abordagem que dão um caráter de complementariedade aos estudos de ambos. Em 1955 Wallace já havia publicado um trabalho propondo que todas as espécies vivas tinham um ancestral comum e posteriormente desenvolveu a ideia de que o isolamento geográfico é um dos fatores que originam novas espécies. Como foi o primeiro a propor uma “geografia” das espécies animais, é chamado de “pai da biogeografia”.

Outra injustiça frequentemente cometida na história do pensamento evolutivo é a avaliação sobre o trabalho do francês Jean-Baptiste de Lamarck, que em 1809 publicou sua “Philosophie Zoologique”, na qual desenvolve uma teoria da evolução em uma época em que não havia conhecimento suficiente para sustentá-la. O trabalho de Lamarck foi criticado, e é até hoje, porque propunha que os caracteres adquiridos pela “lei do uso e desuso” seriam transmitidos aos descendentes, mas pouca gente sabe que o próprio Darwin, ao contrário de Wallace, concordou com isso. Darwin sabia que as espécies evoluíam e se diferenciavam, mas não sabia explicar a origem da variabilidade que era moldada pela seleção natural, bem como a forma de transmissão dessa variabilidade. Além da transmissão dos caracteres adquiridos, acreditou na herança por mistura.

 A explicação sobre a transmissão das características hereditárias só foi elucidada em 1900, quando foi redescoberto o trabalho sobre hereditariedade feito pelo monge austríaco Gregor Johann Mendel. Apesar de publicado em 1866, o trabalho teve pouco impacto na comunidade científica da época e ficou desconhecido até mesmo dos evolucionistas. Quando o trabalho foi redescoberto, Darwin, assim como Mendel, já havia falecido. O trabalho de Mendel corroborou a teoria evolutiva de Darwin e Wallace e possibilitou o desenvolvimento posterior da chamada “síntese evolutiva moderna” nas décadas de 1930 e 1940.

Outro importante nome do pensamento evolutivo é Emil Hans Willi Hennig, um biólogo alemão que em 1950 publicou o livro “Fundamentos de uma Teoria da Sistemática Filogenética”, no qual propõe um método de classificação dos seres vivos que implementa o conceito de ancestralidade comum. No método Hennigiano, a descendência com modificação é a causa dos padrões hierárquicos de uma classificação que possibilita a reconstrução da história evolutiva.

As contribuições de Darwin, Hennig, Lamarck, Mendel, Wallace, homens à frente do seu tempo, e de outros que ajudaram a construir o pensamento evolutivo, mudaram a forma como a humanidade vê o mundo. Podemos fazer uma analogia entre o heliocentrismo de Copérnico e a Teoria Evolutiva de Darwin e Wallace. Enquanto aquele tirou a Terra do centro do Universo, estes tiraram o homem do centro da criação.

Certas deturpações da teoria evolutiva procuraram justificar ideologias elitistas, discriminatórias e racistas. O “Darwinismo Social”, que não tem nada a ver com a obra de Darwin, foi utilizado como justificativa para o imperialismo capitalista europeu do século XIX, para a eugenia nazista e para a escravidão de africanos na América e na Europa. Chamo de deturpações porque Darwin, que escreveu sobre a origem do homem, jamais defendeu a subjugação de uma etnia ou grupo social por outro e a teoria evolutiva leva justamente a conclusões contrárias a essa prática. Apesar de Darwin acreditar que os brancos britânicos seriam superiores aos negros, ele repudiou veementemente a escravidão. No livro “A Causa Sagrada de Darwin”, lançado no Brasil no ano passado, os maiores biógrafos de Darwin, Adrian Desmond e James Moore, defendem que “o ponto de partida de Darwin foi a sua crença abolicionista no parentesco sanguíneo, numa descendência comum” a todos os seres humanos. Segundo os autores, mesmo já sendo um abolicionista convicto, uma passagem acontecida no Brasil em 1836 teria dado motivação adicional para o desenvolvimento de sua teoria: “ele ouviu os gritos e os guinchos de um escravo torturado e não podia fazer nada para intervir. E assim sua viagem acaba e o horror daqueles sons ficou com ele a vida toda”.

A teoria evolutiva nos ensina que a evolução não é teleológica, determinística, linear. A vantagem adaptativa de uma determinada característica não é absoluta, ao contrário, depende do meio em que existe. O que é adaptativo em um determinado ambiente pode ser deletério em outro. Nesse contexto a diversidade é importante, pois quanto mais diversa uma população, maiores as chances de sobrevivência no caso de mudanças das condições ambientais. Essa constatação refuta a naturalidade do melhoramento genético propugnado pelas doutrinas eugenistas e nos traz a lição de que a riqueza da nossa espécie consiste nas diferenças entre os indivíduos. Suprimi-las, além de não ser ético, é prejudicial ao sucesso evolutivo.

A sobrevivência dos mais aptos também não é uma verdade absoluta. Muitas espécies evoluíram com padrões de comportamento altruísta, onde certos indivíduos despendem energia na proteção de outros. Darwin chegou a abordar isso em seus trabalhos, sugerindo o conceito de “seleção de parentesco”. O comportamento altruísta é, portanto, objeto da seleção natural principalmente em espécies sociais, como é o homem. A sobrevivência de um maior número de membros do grupo é vantajosa e assim a seleção atua no sentido de garantir a proteção do conjunto de indivíduos.

O conceito de ancestralidade comum mostra que todas as formas de vida são ligadas. A composição química dos organismos e os estudos paleontológicos, anatômicos e embriológicos já demonstravam isso, mas a síntese evolutiva moderna provou definitivamente. Não há sentido, portanto, em se pensar num homem à parte da natureza. Somos apenas um elo da corrente da vida, uma espécie de primata entre tantas existentes no mundo. Temos muito mais semelhanças com outros seres vivos do que diferenças. Isso nos faz refletir sobre a necessidade de manutenção do equilíbrio ambiental, pois sendo parte da natureza, seremos prejudicados ao degradá-la. Ao derrubar o antropocentrismo, a teoria da evolução nos remete a uma discussão ética sobre o nosso direito de explorar a natureza como se ela fosse feita exclusivamente para o homem.

A evolução biológica é uma lei natural, e seu real entendimento leva a um mundo com maior respeito à diversidade e às distintas formas de vida. Leva ainda a uma posição de humildade do homem diante da natureza e à preocupação com o meio ambiente e com a justiça social. Os que entenderam a “luta pela sobrevivência” como justificativa para as desigualdades, não compreenderam a mensagem dos evolucionistas.

O vídeo abaixo é um interessante resumo da biografia de Darwin (em inglês).