Por Joaquim Maia Neto
Na semana que passou um irreverente protesto agitou o bairro paulistano de Moema, uma das regiões mais ricas da cidade. Denominado “Milionárias de Bike”, o movimento reuniu ciclistas que pedalaram de salto alto na ciclofaixa recém inaugurada no bairro.
O protesto foi motivado pela declaração da comerciante Carolina Maluf, que atua na região, indignada com a existência da ciclofaixa e com a redução de vagas para estacionamento de automóveis. A empresária afirmou, irritada, que suas clientes milionárias não poderiam ir até sua loja pedalando, calçadas com sapatos de saltos altos.
A aparência folclórica da declaração e o tom de bem humorado do protesto não podem nos levar a subestimar o conflito crucial para o futuro das grandes cidades que está por trás deste assunto. O que se discute são soluções para os problemas de mobilidade urbana e de degradação ambiental causados pelo número excessivo de automóveis que circulam nas urbes do país.
Manifestante no protesto "Milionárias de Bike" Foto:Patrícia Cruz/Folhapress |
O Brasil, ao contrário de muitos países europeus que são referência em mobilidade urbana, adotou, de uma maneira geral, um modelo de planejamento das cidades que privilegia a ocupação do espaço público pelo carro em detrimento dos pedestres e da convivência harmônica entre as pessoas e destas com a natureza e com as áreas comuns. Este modelo sempre foi nefasto. Durante o longo período em que o Brasil tolerou com passividade o abismo social que separava a maioria rica da minoria quase miserável, o problema afetava apenas os pobres, que não dispunham de recursos para adquirir um automóvel - sonho de consumo do brasileiro - e que tinham seu direito à mobilidade usurpado pela má qualidade ou pelo custo proibitivo do transporte público. Criou-se a cultura de que transporte coletivo público é “coisa para pobre”. Quem tem dinheiro anda de carro.
Com a recente melhoria na distribuição de renda e a consequente ascensão à classe média de parcela significativa da população brasileira, a propriedade de automóveis se popularizou. Pessoas que não dispunham desse bem, passaram a adquiri-lo e nas casas onde já havia um automóvel da família, tornou-se comum haver um carro para cada membro habilitado a dirigir. O resultado é o que vemos atualmente: um colapso na capacidade de locomoção nas grandes e médias cidades e uma forte redução na qualidade do ar daquelas maiores. A solução mais comum encontrada pelos prefeitos e governadores é investir em obras viárias caras que facilitam a corrupção e desperdiçam dinheiro público. O governo federal, por sua vez, age na contramão da solução do problema, promovendo incentivos fiscais à aquisição de veículos automotores como forma de aquecer a economia.
Ocorre que já começa a ficar explícito que as soluções adotadas até agora não passam de “enxugamento de gelo”. Quanto mais se investe em obras viárias e se populariza o uso do automóvel, mais problemas aparecem. Se não houver mecanismos de planejamento urbano voltados à adaptação do espaço público às pessoas e não ao carro, aliados a uma forte regulação estatal sobre o uso do automóvel, o caos se instalará. Na verdade já se instalou em cidades como São Paulo e Belo Horizonte e está próximo em outras como Brasília e Recife.
Ciclovia da Radial Leste e o Trânsito de São Paulo |
Sabendo do óbvio, administradores públicos começam a se mobilizar, ainda de maneira tímida e pontual. A ciclofaixa em Moema é uma das ações que são parte da solução do problema, assim como outras que começam a ser adotadas, como expansão do metrô, implantação de corredores de ônibus e de pontos de aluguel de bicicletas, restrição de circulação de carros no centro da cidade, entre outras. Porém, os mesmos gestores que de um lado adotam políticas de mobilidade corretas, de outro reproduzem na prática administrativa a cultura dominante que privilegia o transporte individual. Na maioria das cidades onde as ciclovias ou ciclofaixas começam a se tornar realidade, trata-se o uso da bicicleta como apenas uma opção de lazer e não de transporte. É comum encontrar ciclofaixas que só funcionam nos finais de semana ou que levam do “nada a lugar nenhum”. Muitas cidades restringem o acesso de bicicletas nos trens, mesmo as dobráveis. Quanto ao transporte coletivo urbano há a mesma visão míope que paira sobre a bicicleta, só que de modo inverso: “é só para ir ao trabalho”. Nos finais de semana o número de linhas e a frequência de ônibus diminui drasticamente podendo inviabilizar o lazer de quem ainda não tem carro e obrigar muitas pessoas a usarem o automóvel quando poderiam se deslocar, com mais segurança, usando o transporte público.
As posturas da maioria das empresas e os comportamentos individuais também são grandes empecilhos ao desenvolvimento da cultura do transporte público. Em muitos lugares o empregado que resolve ir trabalhar de bicicleta é visto como um “ET”. As empresas não disponibilizam lugares para guardar a bicicleta, nem armários e banheiros, que podem ser necessários nos casos de necessidade de troca de roupa. Há também a questão do status. O trabalhador que chega ao trabalho de carro, ainda que tenha amargado horas no congestionamento, é visto como uma pessoa de sucesso, principalmente se seu carro for grande, daqueles que emitem mais carbono. Aquele que vai ao ponto de ônibus é visto como um “coitado”.
Corredor de ônibus Fonte: www.skyscrapercity.com |
É raro ver alguém mais abastado reivindicando melhorias no transporte público. Como as pessoas que podem se dar ao luxo de andar de carro se recusam a usar o transporte coletivo, que no geral ainda é muito ruim, não se cria demanda necessária para sensibilizar os governantes quanto à melhoria do sistema de transportes. Por outro lado, são comuns as reivindicações de novas faixas de rolagem, novas pistas, viadutos, estacionamentos. Cidades como Brasília e São José do Rio Preto, numa total falta de bom senso, estão discutindo a necessidade de estacionamentos públicos subterrâneos, que só servirão para aumentar a quantidade de carros em circulação, quando o ideal seria disponibilizar aos cidadãos mais ônibus, metrô, ciclovias, calçadas, integração entre os modais (inclusive tarifária), faixas de pedestres, praças e áreas verdes.
A gritaria das milionárias de Moema sempre vai existir, pois infelizmente tem muita gente que, de maneira quase irracional, prefere passar horas presa no trânsito, amenizando seu estresse com boa música, ar condicionado e reclamações, do que convier com pessoas diferentes, seja em um vagão de metrô ou em um ônibus. Preferem gastar seus tênis caros nas caras academias. Para ir às compras, só de salto alto. Mas as bicicletas as atrapalham...
Ótimo texto! É a cara da cidade onde moro: Goiânia, onde não há espaço para caminhadas ou para andar de bicicletas, a não ser em locais específicos e nos finais de semana, e o transporte urbano é caótico, sem contar que não leva a todos os lugares da cidade.
ResponderExcluirJoaquim, seu blog é muito bom! Sempre venho aqui para me informar! Realmente, o problema do transporte público, excesso de carros nas ruas, e o suposto "status" de ter um carro, é lastimável. Estamos muito longe da mentalidade européia, onde a maioria da população prioriza o transporte publico (de qualidade, diga-se de passagem) e a bicicleta como meio de transporte.
ResponderExcluirQuando trabalhava na CGU, lá eles fizeram um bicicletário, e eu, na época, fiquei muito empolgada. Mas consegui ir apenas 2 vezes de bike para o trabalho, porque fiquei com medo de ser mais uma vítima fatal neste trânsito caótico. Os ônibus quase passavam por cima de mim. Infelizmente, desisti! É uma pena, pois Brasília é a cidade ideal para o transporte de bike, pois quase não tem subidas e descidas.
Parabéns pelo blog! Ah, o Pablo, meu marido, adorou tb!
Abraço