Por Joaquim Maia Neto
É impressionante como o poder do capital supera divergências ideológicas e rivalidades políticas. A revista Veja, um dos mais tendenciosos veículos de imprensa do país, é capaz de se alinhar com o governo quando o assunto é a defesa dos interesses das empreiteiras, do agronegócio e das petroleiras. É o que podemos deduzir da edição distribuída neste domingo (nº 2246), com três matérias “ambientais” na sequência (páginas 140 a 152). Em uma das matérias a revista afirma, referindo-se ao código florestal aprovado recentemente nas comissões do Senado, que “O novo código é o primeiro passo para conciliar preservação e desenvolvimento econômico”. Em outra, destaca cientistas que fraudaram pesquisas que associam o aquecimento global à atividade industrial, mas omite uma infinidade de estudos sérios que indicam a natureza não natural do aumento de temperatura que testemunhamos nos dias de hoje. Mas é a matéria de capa que será tratada neste artigo.
A publicação semanal dos Civita até que presta alguns serviços ao país denunciando falcatruas que ocorrem na administração pública, mas costuma exagerar, beirando a leviandade, quando os fatos comprometem o governo do PT. Não tem a mesma combatividade contra os tucanos. Simplesmente esqueceu o escândalo da inspeção veicular existente no Rio Grande do Norte, com conexões em São Paulo , que envolve tucanos de alta plumagem. Será que essa postura guarda alguma relação com o fato de a Editora Abril não ter sido contemplada no pacotão de salvamento das empresas de comunicação promovido pelo governo Lula, que salvou as Organizações Globo? De qualquer maneira, a liberdade de Veja é necessária num estado democrático de direito. É melhor convivermos com os excessos inerentes à democracia, do que com a censura.
O “estranho” alinhamento de Veja com o governo veio com uma matéria escandalosamente superficial, recheada de informações parciais e distorcidas, voltada a desqualificar um trabalho de militância ambientalista de um grupo de estrelas da Rede Globo. Dezenove atores globais lançaram um movimento (movimentogotadagua.com.br) que tem como principal instrumento de divulgação um vídeo no qual criticam a construção da futura Usina Hidrelétrica de Belo Monte, projetada para o Rio Xingu, no estado do Pará. De acordo com a revista, alguns vídeos postados na internet com a participação de estudantes de engenharia e economia da Unicamp e da UnB, além do apresentador Rafinha Bastos, famoso por suas declarações polêmicas de caráter homofóbico, racista, machista e discriminatório, teriam “nocauteado” as estrelas da Globo por meio de argumentos inteligentes e supostamente calcados em pesquisas, em oposição as “tagarelices” e à “desinformação” dos globais, nas palavras da Veja.
Os vídeos que Veja utiliza para fundamentar sua matéria, são sátiras ao filme do movimento contrário à usina e têm uma linha fascista pois, apesar de aparentemente rebaterem as informações dos globais com dados técnicos, é evidente a motivação voltada à desqualificação das pessoas dos atores, apenas por estarem vinculados profissionalmente a uma emissora com perfil reacionário. São assim, mais reacionários do que a própria Rede Globo.
O histórico de comprometimento das Organizações Globo com o atraso do país, efetivado na sua estreita relação com setores oligárquicos da política nacional, faz com que os vídeos dos estudantes e a matéria de Veja tenham algum apelo junto aos “inconformados” mais desavisados que, caindo na armadilha fascista da desqualificação pessoal por meio do rótulo “Global” imputado aos artistas, atacarão o movimento pensando atacar a Globo. Estes que hoje rotulam os artistas para desqualificá-los, já fizeram o mesmo com comunistas, petistas, socialistas, ambientalistas, religiosos e tantos outros, tratando-os como ingênuos, irresponsáveis, loucos ou lunáticos. Da mesma forma já desqualificaram ONGs sérias, com o argumento de que estão “a serviço de interesses estrangeiros”. Por que não fizeram o mesmo com o movimento “Sou Agro”, também estrelado por (outros) artistas globais? Será que é porque seus interesses ocultos são coincidentes? Cabe perguntar se a motivação de Veja e dos estudantes é apenas o interesse no debate construtivo ao desenvolvimento do país ou se há alguma influência das empreiteiras que vivem de dinheiro público, engordam, direta ou indiretamente, as carteiras de publicidade do grupo Abril e contratam engenheiros treinees recém-formados, como serão em breve os “cultos” atores do Youtube favoráveis à Belo Monte.
Feitas as devidas considerações acerca da motivação da reação, vamos ao debate sobre a usina. É preciso que se diga que Veja omitiu o fato de que cerca de 350 cientistas e intelectuais brasileiros de diversas instituições públicas e privadas, incluindo renomadas universidades, encaminharam à presidente Dilma uma carta criticando a construção da Usina de Belo Monte, com argumentos científicos que justificam a oposição ao projeto.
Um dos supostos “golpes” dos estudantes que teria levado a nocaute os artistas, é a constatação de que o Brasil precisa de incremento na produção energética para fazer frente à demanda representada pela duplicação do consumo nos próximos dez anos, considerando a projeção de crescimento de 5% ao ano. Se o Brasil não atender a esta demanda “a economia vai ficar travada”. Este é um argumento baseado na lógica de que desenvolvimento é igual a crescimento, uma tese que vem sendo desmontada pela chamada “economia verde”. Fruto da ganância capitalista, a política de crescimento contínuo é insustentável e responsável por danos ambientais, geração de resíduos e esgotamento dos recursos naturais. Tal política sequer garante distribuição de renda e justiça social, e o colapso ambiental que provoca leva à crise econômica futura.
Veja é brilhante na arte da manipulação de números e informações. Destaca o cálculo de um engenheiro mostrando o percentual de floresta que será alagada em relação à área total da Amazônia Legal. Claro que esta porcentagem é pequena, mas Veja não informa que a Amazônia Legal não é só floresta e “esquece” que Belo Monte é apenas uma das usinas projetadas para a região. Além disso, os impactos de uma UHE sobre o ecossistema não são restritos às árvores que serão suprimidas, mas contemplam a alteração da dinâmica hidrológica, a obstrução do trânsito da fauna aquática, a eutrofização do ambiente, entre outros. Deve-se considerar o percentual de espelho d’água impactado pelo conjunto das usinas em relação à bacia hidrográfica. Dizer que metade da área alagada é o próprio leito do rio é uma típica distorção dos fatos, pois transformar um ambiente aquático lótico (água corrente) em lêntico (água parada) é uma alteração ambiental negativa altamente significativa.
Outra grosseira manipulação dos fatos é cometida acerca da diferença de vazão do Rio Xingu entre os períodos de maior cheia e de maior seca. Utilizando os próprios dados publicados pela revista, percebemos que a vazão mínima é de menos de 3% da vazão máxima. A comparação que a revista usa, mostrando que esta vazão mínima pode encher 1600 piscinas olímpicas por hora, só não me faz rir porque eu sei que ela engana leitores que não estão familiarizados com o assunto. Já que é para manipular números, vamos dar outro exemplo. Se você tem um copo com 250 ml de água e outro com 3% deste volume, ou seja, 7,5 ml, o que você dirá deste copo? Que está praticamente vazio, não é?
Fonte: http://www.paginainternacional.com.br/ |
Com base no depoimento de um cacique, Veja afirma que os índios estão satisfeitos com a obra. Uma rápida busca no Google mostrará diversos vídeos de manifestações indígenas contra a usina. Mesmo que nenhum palmo de terra indígena seja alagado, o que é contestado por muitos pesquisadores e engenheiros, a preocupação dos povos do Xingu é com a alteração ambiental que a obra causará e que poderá impactar suas terras de maneira negativa. Qualquer barramento de rio é desastroso para a ictiofauna, que é uma fonte de alimento importante para índios e ribeirinhos.
Outro exemplo de desqualificação reverberada pela Veja é a fala de uma estudante da Unicamp a respeito da localização do Parque do Xingu. Qualquer brasileiro médio, ao olhar o mapa, dirá que o Parque está abaixo da barragem, pois em geral as pessoas, ainda que equivocadamente, consideram que algo que está mais ao sul “está mais abaixo”. Nem todos sabem que, tecnicamente, em uma bacia hidrográfica algo está mais abaixo quando está a jusante, e não a montante, como é o caso do Parque em relação à barragem. Utilizar uma fala que é comum na linguagem popular para desqualificar o vídeo é altamente tendencioso. A distância de mil quilômetros do Parque do Xingu até a barragem é um mero detalhe, porque muito mais próximo do que isso estão várias outras terras indígenas e importantes unidades de conservação, como a Reserva Extrativista Rio Xingu e a Estação Ecológica da Terra do Meio, que sofrerão indiretamente os impactos da barragem.
Energia hidrelétrica não é energia limpa. Maitê Proença está certa. A frase simplista, quase infantil de um estudante da Unicamp, que diz que é limpa porque a água sai como entrou, não deveria embasar matéria jornalística de uma revista que se diz séria. Reservatórios de usinas hidrelétricas emitem metano oriundo da matéria orgânica morta em consequência do alagamento, em quantidade muito superior aos processos naturais que ocorrem na floresta, mesmo quando é feito o desmatamento das áreas a serem alagadas, pois este procedimento mitiga o impacto mas não o neutraliza. Além disso, o conceito de energia limpa fundamentado apenas na emissão de gases do efeito estufa é muito pobre, pois há vários outros impactos ambientais relacionados à geração de energia hidrelétrica.
Quanto ao fator de capacidade da usina, mesmo que seja de 41% como afirma o “nocauteador” engenheiro Cássio Carvalho, este número é inaceitável para os dias atuais. A média brasileira de 52%, puxada para baixo pela ineficiente UHE de Balbina, é bem maior que a de Belo Monte. Diversos técnicos afirmam que Belo Monte será a usina mais cara e menos produtiva do país. Não podemos aceitar que uma usina nova seja tão menos eficiente do que a média nacional, pois os avanços tecnológicos ao longo do tempo deveriam levar ao aumento da eficiência energética.
Usina termo solar concentrada no deserto de Mojave, Califórnia, EUA |
Finalmente, um tema que tem pautado a discussão acerca da matriz energética: o custo da produção do kilowatt/hora. É verdade que a energia hidrelétrica é muito barata. Um kilowatt/hora custa no Brasil cerca de R$ 0,05. É bem menos que os valores das fontes alternativas. Porém, é um equívoco deixar de investir na diversificação da matriz, pois é justamente o aumento da produção que barateia o custo. A comparação do custo da energia hidrelétrica com o de energias mais limpas não considera o custo das externalidades negativas inerentes aos impactos ambientais e sociais das usinas hidrelétricas. Hoje o Brasil já produz energia eólica competitiva. A revista Veja cita custos de investimentos em energias alternativas sob os rótulos de “energia eólica” e “energia solar”. Outra desinformação, não dos artistas, mas da Veja. O custo a que Veja se refere provavelmente é o da energia fotovoltaica, aquela produzida a partir de painéis solares, muito cara e pouco eficiente. A energia solar mais eficiente é a termo solar concentrada (Concentrated Solar Power). Os EUA têm aumentado muito o investimento neste tipo de geração e a Alemanha planeja investir no mesmo sentido em países que tenham potencial, como os do norte da África. O custo de um kilowatt/hora deste tipo de energia gira hoje na casa dos R$ 0,48, mas pode ser reduzido para a metade disso em dez anos com os investimentos iminentes. Ainda é muito quando comparado ao custo da energia hidrelétrica, mas não é nenhum absurdo quando se considera o potencial de redução de impactos ambientais.
É lamentável ver uma das raras iniciativas em prol do meio ambiente vinda de artistas formadores de opinião sendo bombardeada por uma matéria de capa tendenciosa em uma das revistas de maior circulação no país, com base em omissões e manipulação de dados. Só é possível ter acesso à informação de qualidade consultando veículos de imprensa alternativos. A Internet ajuda muito. Graças a ela podemos desmontar farsas como a da Veja e ver que o nocaute não passa de golpe baixo.
Joaquim, os interesses que movem publicações sensacionalistas e manipuladoras como revista veja com certeza merecem todo nosso repúdio. Mas acho que merece repúdio também ações que ofereçam munição ao inimigo, como foi o caso dessa campanha de atores globais que nunca tiveram o menor compromisso com as causas ambientais, e nem se deram ao trabalho de se preparar para isso. Se tivessem um compromisso mais sério com causa que defendem teriam procurando uma acessoria técnica que poderia ter evitado várias das besteiras que falaram e a conseqüente ridicularizarão de uma causa que é seria. E Joaquim, não se iluda com a boa intenção desses atores, achar que eles também não tem outros interesses é inocência. Ou mesmo, achar que é valido que pessoas públicas tirem proveito de uma causa, para que esta se alastre a passos mais largos, também não acho uma boa idéia. Passos mais largos também levam a tombos maiores. As idéias de conservação ambiental devem caminhar sempre com passo firmes e seguros, mesmo que curtos. Essa luta é difícil, e precisa de um exército muito bem preparado, soldados mal preparados e não bem alinhados com a causa sempre levam a derrota. Colar em atores globais o rótulo de “formadores de opinião” acho que é um pouco fora da realidade, a função desses profissionais é o entretenimento, quase sempre em obras de ficção, e o público sabe reconhecer isso. Quero ainda acreditar que os verdadeiros formadores de opinião são professores e os profissionais capacitados em cada área que realizam ações sérias, como você faz nesse blog. Não gostaria de ver os verdadeiros formadores de opinião de alinhando a falsos formadores, pois aí o foco certamente será perdido e a credibilidade da causa também.
ResponderExcluirEstou inteiramente de acordo com o Antônio Carlos, ele foi brilhante em seu comentário e faço minhas suas palavras e acrescento, nao fecho com a revista citada e mesmo assim estou ao lado da desqualificação da campanha com artistas empregados da rede Globo. Se houvesse boa intenção e verdade no que tentam dizer teriam que também condenar o uso abusivo e criminoso de agro-tóxicos que envenenam os humanos, os animais e toda a vida do planeta, um escândalo de proporções bizarras. Cade???
ResponderExcluirNinguém vai atingir a Globo com as críticas não. Ao movimento Gota D'Água recai todas as criticas ao video Global! Arguição falha!
ResponderExcluirÓtimo texto, Joaquim, parabéns e obrigado =)
ResponderExcluirMas faltou uma parte bem significante da manipulação da Revista Cujo Nome Não Deve Ser Pronunciado: a citação de Patrick Moore, que a revistinha dá a entender que ainda é um dos altos diretores do Greenpeace, com direito a colocar a logomarca da ONG, dando a falsa impressão de que o Greenpeace seria a favor de BM e ignorando maliciosamente que Patrick Moore o deixou há nada menos que 25 anos.
Abs
Parabéns pelo blog e pela matéria.
ResponderExcluirEStou postando, escrevendo poemas, tentando chamar a atenção de todas as formas sobre a Belo Monte à muito tempo, e as pessoas não ouviam, não davam a devida importância. Depois do projeto Gota Dágua, as pessoas me procuram para saber mais. Sejam globais o não, sejam inocentes úteis ou não, não importa. O importante é que discussões ambientais estão na boca do povo agora, e só o povo terá a força para mudar a política ambiental atual. Fernando Collor votou contra o código florestal!!!! O que tem por tras disso? Não me interessa, é um voto a mais que temos.Éste é o momento de união por um objetivo comum e não de criticar por preconceitos, sejam eles quais forem.
Concordo parcialmente com Antônio Carlos,mas não exagero nas críticas ao Movimento Gota D' água.
ResponderExcluirTudo bem que tal movimento realmente precisaria se embasar melhor antes de expor qualquer tipo de argumento,ainda mais feito por atores.Tudo bem,também,que nunca deram importância antes a assuntos ambientalistas,mas por que irei critica-los se AGORA começaram a AGIR? Não.É hora de defender.Pior mesmo é FINGIR que nada acontece e não fazer nada.
Sejam um tanto desinformados ou não,sejam globais ou não,como afirmou "Asas da Ilusão".
Por que eu apoio o Movimento? Porque é necessário que o Brasil INTEIRO abra os olhos para o que acontece no seu próprio país.
Sou a favor do debate e da "não-alienação".
Que venham os debates,críticas,informações e questionamentos.
Sabemos que os interesses são muitos e que existe a necessidade de aumento da matriz energética, da mesma forma que as fontes limpas são intermitentes (o que não é motivo para desencorajar investimentos na área).
ResponderExcluirSou CONTRA Belo Monte, Mas acho que falta informação, divulgação de fatos.
Gostei muito do seu texto, coloquei um link pra ele no meu blog http://senta.la/96qg espero que não haja problemas quanto a isso.
Parabéns pela matéria e pelo blog! Estou ajudando a divulgar seu texto.
ResponderExcluirAbraço!
Caro Joaquim,
ResponderExcluirTendo a concordar com a posição do blogueiro. Todavia, como rebater os argumentos em economês e juridiquês de pessoas esclarecidas que são partidarizadas e veem interesse econômico e predatório multinacional nas ONGs, além de rechaçarem qualquer iniciativa defendida pela mídia corporativa e pela direita?
Como rebater os argumentos de economistas e engenheiros?
Como pensar em decrescimento e em explicar e difundir o que é energia verdadeiramente limpa e recursos verdadeiramente sustentáveis quando a esmagadora maioria da população, até há pouco excluída de quase toda a gama de ofertas de consumo, educação e saúde vive sob uma ótica extremamente conservadora, carola, ignorante e reacionária?
Como combater o secular ideológico do taylorismo-fordismo? Como combater o positivismo e as sucessivas conquistas oriundas da industrialização? A maioria das pessoas pensa na relação custo/benefício.
Infelizmente, o Brasil vai investir no petróleo do Pré-Sal. As cidades estão engarrafadas. O transporte público é horroroso. A maioria dos motoristas é apressada e intolerante.
Nosso país sofre por não ter passado pela fundamental cultura do letramento: as pessoas ainda vivem da oralidade. Falta aprofundamento, tempo, interesse e - acima de tudo - capacidade cognitiva para a maioria da população brasileira compreender o discurso midiático.
Portanto, como impor, de supetão, uma necessária mudança de comportamento para 200 milhões de habitantes?!
Saudações,
prof. @heliopaz | http://heliopaz.com | @comdig @unisinos | Editor http://comdig.info | Coordenador do Núcleo de Comunicação Digital @agexcom | Coordenador-Adjunto da Especialização em Jornalismo Esportivo Transmídia |http://bitly.com/tNhPU3 | SOMOS INFINITAS POSSIBILIDADES