Por Joaquim Maia Neto
Deusa Eostre http://www.cantinhodosdeuses.blogspot.com/ |
Muitas pessoas acreditam que a Páscoa é uma data de origem cristã, dada a associação que o cristianismo faz entre essa data e a ressurreição de Jesus. O que poucos sabem é que pode existir uma estreita relação entre a Páscoa cristã e comemorações de origem pagã existentes desde muito antes de Cristo, ligadas à relação do homem com a natureza.
Nas mitologias anglo-saxônica e nórdica cultuavam-se divindades femininas relacionadas à renovação da primavera e à fertilidade. A palavra “páscoa”, no idioma inglês (Easter) e no alemão (Ostern), deriva do nome de Eostre ou Ostera, a deusa da fertilidade e do renascimento. Para os antigos povos do hemisfério norte a primavera era um momento de muita alegria e esperança, motivo de comemoração após o enfrentamento dos rigores do inverno, durante o qual a luta pela sobrevivência era uma tarefa árdua. A fertilidade era muito valorizada, pois era o que garantia a sobrevivência da espécie, do clã, do grupo social, num contexto no qual parte da descendência sequer chegaria à idade adulta devido às dificuldades para “enfrentar a natureza”. Havia celebrações em homenagem à Eostre coincidindo com o Equinócio de Primavera.
Os primeiros relatos acerca das sociedades seminômades que viriam a constituir o povo hebreu, formadas por pastores que se deslocavam pelo Oriente Médio, demonstram a prática de rituais de celebração da primavera, que à época era considerada como o início do ano. Após a “morte” durante o inverno, a natureza se renovava com a chegada da nova estação e os pastores imolavam um animal de seu rebanho em oferecimento às divindades. O objetivo do sacrifício era pedir proteção ao rebanho, afastar espíritos malignos e agradecer pela fertilidade. Há divergências entre historiadores quanto à data desses primeiro relatos, girando entre 2000 e 1200 a.C. Existem questionamentos sobre a existência de vínculo histórico entre os rituais hebreus e os cultos à Eostre. Após a adoção do monoteísmo, durante o período dos patriarcas hebreus, os rituais continuaram sendo desenvolvidos em oferecimento ao Deus de Israel.
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O livro do Êxodo, em seu capítulo 12, relata o surgimento da páscoa judaica, quando os rituais de imolação do cordeiro na primavera passaram a ter outra conotação. Na preparação para a fuga da escravidão e a conquista da Terra Prometida, os hebreus transformaram a cerimônia em uma celebração da passagem de uma situação de opressão para uma condição vitoriosa. Aí está a origem do termo que designa a Páscoa nas línguas de origem latina. Páscoa vem do termo hebraico Pessach, que significa “passagem”.
Na época de Cristo a celebração da páscoa era uma tradição entre os judeus. Sendo judeu, Jesus praticava o rito do cordeiro, e a Última Ceia foi uma ceia pascal. Logo após cear com os apóstolos, o Cristo dirigiu-se ao monte das Oliveiras onde foi capturado para dar início à sua Paixão, assumindo o papel do cordeiro pascal. Portanto, o terceiro dia de sua morte, que é o dia em que os cristãos comemoram a páscoa, ocorreu após o dia da páscoa judaica.
O sincretismo entre os rituais pagãos da mitologia anglo-saxônica e as páscoas judaica e cristã levou ao tipo de comemoração que temos hoje, com os símbolos de renascimento e fertilidade que acompanham a imagem de Eostre, que são os ovos e o coelho (originalmente era a lebre). Interessante notar que os símbolos pagãos parecem assumir predominância nos dias atuais, sob a égide da sociedade de consumo. Outra ligação com a celebração pagã é a vinculação da data a um evento natural. A páscoa cristã é celebrada no primeiro domingo posterior à primeira lua cheia após o equinócio de primavera no hemisfério norte (correspondente ao equinócio de outono no hemisfério sul).
Independentemente de qual páscoa se esteja comemorando, a data conduz a uma reflexão sobre mudança. A passagem do rigor do inverno para a fertilidade da primavera, a libertação do jugo infligido aos judeus ou a morte e ressurreição de Jesus Cristo, são exemplos da vida que supera a morte. Renovação, renascimento, libertação, qualquer que seja o termo que se queira utilizar, a páscoa nos remete a uma necessidade de abandono do que é ruim, do que não nos serve, do que traz sofrimento, para que se adote algo novo, bom, útil, saudável e libertador.
É preciso morrer para ressuscitar. É necessário deixar velhos hábitos para assumir novas maneiras de viver. Não há o esplendor da primavera sem a escassez do inverno. Não há o regozijo da liberdade sem o sofrimento da opressão. Não há renovação da vida sem o perecimento do velho.
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A nossa sociedade só irá evoluir para um mundo justo, feliz, solidário e sustentável quando matarmos em nós a injustiça, a tristeza, o egoísmo, a extravagância e o espírito predatório. É urgente um esforço coletivo contra o atual sistema que nos seduz para termos cada vez mais coisas inúteis, ou no mínimo não essenciais. Nossa tendência ao conforto cômodo e descompromissado e aos caprichos perdulários e destruidores da natureza devem morrer na medida em que nasce uma nova humanidade comprometida com o respeito às leis naturais, às quais estamos inexoravelmente subjugados. Apenas a compreensão de que não podemos fugir a essas leis é que nos permitirá alcançar a harmonia mitigadora do sofrimento que precede a passagem. Que venha a tão necessária e esperada Páscoa!
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