Por Joaquim Maia Neto
Acabo de chegar de uma sessão de cinema com a família. Fomos assistir ao filme Xingu, que retrata a memorável história dos irmãos Villas Bôas na Expedição Roncador-Xingu e na criação do Parque Indígena do Xingu. O filme é uma fantástica produção nacional, dirigida por Cao Hamburger, digna de estar na lista dos melhores filmes já produzidos no país.
Lamentavelmente um número muito pequeno de salas foi disponibilizado para Xingu. Não é fácil concorrer com produções comerciais estadunidenses, como “The Avengers”. A falta de espaço disponível acaba reduzindo muito o público, o que é uma pena, pois o filme é muito útil para se entender um importante período da história recente do país. A distribuição de filmes segue a lógica comercial, onde o que vale é ganhar dinheiro. Talvez a Agência Nacional de Cinema – ANCINE, devesse rediscutir o seu papel para assumir, além de suas ações de apoio e fomento, funções regulatórias, como se espera de uma Agência Reguladora, a fim reduzir as dificuldades no acesso da população a produções com alto grau de interesse público, como é o caso de Xingu.
Mais do que reflexões sobre o mercado cinematográfico, o filme provoca nos espectadores comparações sobre a época em que a história ocorreu e os dias atuais. Orlando, Cláudio e Leonardo Villas Bôas se passaram por analfabetos para se alistarem como trabalhadores braçais a serviço da “Marcha para o Oeste”, uma iniciativa do governo Getúlio Vargas para ocupar áreas “demograficamente vazias” do território nacional ameaçadas de invasão em consequência dos desdobramentos da Segunda Guerra Mundial. Na expedição os irmãos Villas-Bôas assumiram papel de liderança. Conseguiram contatos pacíficos com diversas etnias e impediram massacres que seriam inevitáveis sem sua mediação, num período em que encontros entre brancos e índios continuavam sendo trágicos para as tribos que apareciam no caminho dos “desbravadores”. Os ilustres irmãos sertanistas defendiam que o governo deveria garantir um amplo território onde os índios permanecessem protegidos, com certo grau de isolamento dos brancos, para que sua cultura pudesse ser mantida, de modo a viabilizar um tempo de preparação até que estivessem aptos à integração na sociedade. À época algumas correntes de pensamento defendiam que os índios deveriam ser integrados imediatamente à sociedade por meio de sua incorporação nas forças de trabalho, o que na prática geralmente levava à aniquilação dos povos indígenas.
Orlando, Leonardo e Cláudio Villas Bôas, em 1949 Foto: Acervo Villas Bôas |
Com sua luta os Villas Bôas conseguiram convencer o Presidente Jânio Quadros a criar o Parque Indígena do Xingu, que completou 50 anos no ano passado. Quando foi criado o Parque era o maior território indígena do mundo. Vários povos foram levados para o Parque como estratégia para protegê-los do contato deletério com os brancos. Junto com a conquista de um território protegido, os índios conseguiram políticas de atenção à saúde e assistência em geral. É inegável que se não fosse a iniciativa dos irmãos Villas Bôas, boa parte dos povos indígenas que ainda persistem no Brasil teriam sido dizimados.
O filme Xingu é uma aula. Faz-nos recordar as besteiras que se praticava em nome do desenvolvimento. É verdade que na época não havia preocupações com meio ambiente e por isso ninguém questionava a destruição das florestas para abertura de estradas, a implantação de garimpos altamente degradadores, entre outras ações patrocinadas pelo poder público que hoje seriam objetos de protestos. Nem mesmo o desrespeito e as atrocidades com os antigos ocupantes das terras, os índios, eram questionados. A população branca os considerava selvagens e matá-los era algo que só incomodava pessoas à frente de seu tempo.
Olhando o que está acontecendo hoje no Brasil, é impossível não encontrar semelhanças com o que é narrado em Xingu. Ainda convivemos com notícias de genocídios de povos indígenas. No ano passado o estado do Mato Grosso do Sul foi palco de chacinas contra índios Kaiowá-Guarani, empreendidas por pistoleiros contratados por fazendeiros que insistem em roubar as terras dos índios. Também em 2011 tribos isoladas foram alvo de traficantes na fronteira com o Peru. A nova onda desenvolvimentista, cujo carro-chefe é o Programa de Aceleração do Crescimento – PAC, ameaça não apenas as florestas e o meio ambiente em geral, mas também os povos indígenas. A Usina Hidrelétrica de Belo Monte é um exemplo. As populações indígenas afetadas não foram consultadas. Muitos povos serão deslocados de suas terras e a migração maciça de operários para as obras poderá causar conflitos, da mesma forma como aconteceu no passado com a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré ou da Rodovia Transamazônica. Os povos indígenas lutaram contra a construção da hidrelétrica e mais uma vez foram ignorados pelo governo. Parece que o fato de termos hoje no país um governo democrático com origem na esquerda não faz muita diferença na forma como se leva o “desenvolvimento” ao interior do país. Quando se trata de grandes obras de infra-estrutura, as preocupações do governo com os índios não diferem muito daquelas da República Velha ou da ditadura militar das décadas de 60 a 80.
Cerimônia no Parque Indígena do Xingu Fonte: http://www.portaleducarbrasil.com.br/ |
É verdade que grandes avanços ocorreram na demarcação de terras, com apoio do poder judiciário. O Supremo Tribunal Federal tem se manifestado a favor das ações do executivo nessa área. As políticas de acesso de índios às universidades também avançaram muito. Por outro lado, a proteção quanto à segurança dos índios e de suas terras ainda é negligenciada pelo governo. A Fundação Nacional do Índio – FUNAI, entidade federal responsável pela execução da política indigenista, possui estrutura insuficiente para cumprir seu papel e não dispõe de uma política de valorização da carreira de seus servidores, o que compromete muito a sua atuação. É preciso fortalecer e preparar melhor as áreas do governo que tem alguma interface com a proteção dos índios e readequar as políticas públicas que prejudicam os esforços de conservação da cultura e dos meios de vida dos povos indígenas.
Hoje a maior parte dos povos indígenas brasileiros está consciente dos seus direitos e da necessidade de organização para lutar por eles. A visão romântica do índio puro e inocente é um estereótipo que não combina com a realidade atual. Como qualquer sociedade humana, as sociedades indígenas têm suas virtudes e seus defeitos. A responsabilidade da qual a sociedade e o governo não podem se eximir é a de compensar os povos indígenas por todas as atrocidades que foram cometidas no passado de impedir que continuem na atualidade. Temos um débito com os índios e as políticas compensatórias que garantam a manutenção de sua diversidade cultural e genética, bem como sua inserção digna na sociedade devem ser buscadas incessantemente. O conhecimento da história é fundamental para que a sociedade entenda a origem desse nosso débito e também para que evitemos repetir os erros do passado. Nesse aspecto, o filme Xingu colabora bastante na educação dos brasileiros sobre quem são nossos irmãos índios.
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ResponderExcluirBoa noite Joaquim Maia Neto!
ResponderExcluirPrimeiramente, parabéns pelo seu maravilhoso trabalho neste blog, pois você consegue informar e esclarecer a população leiga, e também à parcela esclarecida, sobre a situação sócio-ambiental do país, de forma a permitir perfeita compreensão e claro entendimento do cenário nacional atual neste aspecto.
Não tenho um embasamento técnico-ciêntífico para contestar um questionamento de um profissional gabaritado como você, até porque estou iniciando minha carreira profissional agora. Mas creio que um dos motivos, pelo qual a Agência Nacional de Cinema - ANCINE não "assume funções regulatórias, como se espera de uma Agência Reguladora, a fim reduzir as dificuldades no acesso da população a produções com alto grau de interesse público, como é o caso de Xingu." reside no fato, de que infelizmente, não é de interesse da grande maioria da população brasileira o entendimento da história nacional, da trajetória política-social da nossa sociedade, e das práticas ambientais adotadas no presente e no passado do nosso querido país. Esta minha justificativa é baseada nas causas #florestafazadiferenca e Movimento Gota d'Água, que colheram alguns milhões de assinaturas,mas que comparadas aos 193 milhões de brasileiros atuais, me levou a crer que, hoje há muito mais brasileiros engajados sócio-ambientalmente falando do que ontem, porém ainda sim não podemos dizer que este seja um assunto de alto grau de interesse público (da maioria da sociedade). Não há dúvida que é um tema importante para a vida de todos no presente e no futuro, mas muitos não se preocupam com isso. Acredito que mesmo que se desse maiores espaços a produções como esta, as produções meramente comerciais de entretenimento continuariam a serem as preferidas e mais vistas.
Desculpe-me se me julgar errado!
Atenciosamente,
Icaro Henrique.
Meu caro Icaro, concordo com você. Só para ilustrar, quando há greve de professores ou o não funcionamento de um posto de saúde, a população em geral reclama, pois dá certo valor à saúde e à educação. Mas se órgãos ambientais não funcionam, se há desmatamento ou poluição, poucas pessoas se manifestam. A situação ambiental do país está nessa situação porque a sociedade ainda não considera o meio ambiente como algo prioritário.
ExcluirMuito obrigado por acompanhar o blog e tecer seus comentários.
Grande abraço.